Os relatos da longa visita de Cavaco Silva à Madeira - uma semana inteira, que a agenda divulgada está longe de justificar - deixaram-me a estranha sensação de que o Presidente está de visita a um país estrangeiro: uma espécie de Palop, só que um Palop muito especial onde pagamos um alto preço por a bandeira nacional ainda flutuar onde o governo local consente.
A visita começou mal antes mesmo de começar. Primeiro, porque foi antecedida de uma outra da segunda figura do Estado - essa anémona política que é Jaime Gama - que resolveu entronizar o dr. Jardim como símbolo supremo da vida democrática: o presidente do Parlamento nacional propondo como exemplo alguém que trata o parlamento regional como um lugar onde coabitam um bando de eunucos às suas ordens e “um bando de loucos” que se atreve a pôr em causa os ensinamentos do querido líder. Depois, porque antes mesmo de embarcar, já Cavaco tinha feito divulgar um comunicado anunciando ao que ia: elogiar a ‘obra’ do dito líder. E, enfim, porque, à partida, já o Presidente sabia que a sua agenda era determinada pelo dr. Jardim e de acordo com os seus desejos: estava afastado da Assembleia Regional, para que os “loucos” não envergonhassem a Região; estava afastado das traseiras da obra de sucesso do querido líder, onde entre 20 a 30% da população vivem abaixo do limiar de pobreza e em condições que deveriam obrigar o Presidente da República a perguntar alto e bom som para onde foi o dinheiro, além dos túneis e viadutos para encher o olho; e, finalmente, porque apenas lhe era consentido - e ele aceitou - receber a oposição representada no parlamento regional em “encontros informais”, no hotel onde Sua Excelência se hospedava, tal qual como receberia amigos ou conhecidos locais. E Cavaco Silva - o “sr. Silva” de Alberto João Jardim - aceitou tudo isto, muito mais do que é normal aceitar numa visita ao estrangeiro.
A visita de Cavaco à Madeira é uma nódoa que não sairá tão cedo, um momento de vergonha e capitulação que veio manchar uma Presidência até aqui pacífica, louvada e isenta de riscos. Mas, na primeira vez em que tinha de correr riscos políticos e assumir-se como representante primeiro da nação portuguesa, Cavaco Silva mostrou a massa de que é feito. E deixou muitas saudades de Presidentes com coragem e capazes de distinguir aquilo que, às vezes, é essencial e de que não há forma de fugir. Tivemos dois desses: Eanes e Mário Soares. Cavaco não tem esse instinto democrático inato: é um democrata por educação, não por natureza. Já o sabíamos, mas foi penoso ter de o recordar e logo a pretexto desta fantochada interminável e menor que é a longa chantagem de trinta anos que o dr. Jardim exerce sobre os órgãos de soberania e a política portuguesa.
O que eu gostava que um Presidente da República do meu país fosse fazer à Madeira era que, em lugar de se juntar ao coro dos elogios à ‘obra’ do dr. Jardim, tivesse um elogio para os portugueses que, trabalhando e pagando impostos ao longo de trinta anos, contribuíram para que a ‘obra’ se fizesse e para que o dr. Jardim fosse sucessivamente reeleito à conta disso. Que tivesse a coragem de resgatar a dívida de gratidão que a Madeira tem para com Portugal e que tem sido paga pelo dr. Jardim com intermináveis insultos e provocações, como se fosse nosso dever pagar e calar em troca do privilégio de a Madeira continuar portuguesa. Gostava que o Presidente explicasse aos madeirenses que ser português não é o resultado de uma conta de merceeiro, em que se pesa o deve e o haver e em que se reivindicam todos os direitos e se exige isenção de todos os deveres. E que, a continuar por este caminho, chegará o dia em que os portugueses vão exigir, não a “autonomia sem limites” de que falava o infeliz Luís Filipe Menezes, mas sim a independência da Madeira: a independência declarada por Portugal, entenda-se; não a independência declarada pela Madeira. Que chegará o dia em que os portugueses se vão perguntar por que é que hão-de continuar a sustentar o poder, os negócios e o exibicionismo mediático daquelas figuras patibulares que esperavam Cavaco no aeroporto do Funchal. A mim, se me perguntarem se quero continuar a pagar impostos para sustentar esta ‘autonomia’ da Madeira, representada e usufruída por aquela gente, eu respondo já que não. Que vão à vida deles e que arranjem quem lhes pague as contas, porque a mim nunca me pagaram para ser português nem eu aceitaria.
Cavaco Silva deveria ter mais cuidado, mais sensibilidade política e mais noção de Estado ao afirmar que “nenhum português contesta hoje a autonomia regional”. Qual autonomia: a que custa 60, a que custa 90 ou a que custa 120 milhões por ano?
Eu faço parte de um grupo, só aparentemente minoritário, dos que não acham o dr. Alberto João Jardim “engraçadíssimo”. Não lhe acho mesmo piada nenhuma. Portugal já não é, felizmente, aquela tristíssima gente que vimos nas reportagens televisivas desta semana à espera da comitiva dos drs. Cavaco e Jardim. Aquilo é o Portugal no seu pior - inculto, ignaro, subserviente perante o poder, mendicante, reverente, alimentado a ‘sopas de cavalo cansado’ e vendendo o voto por um chafariz. E também não sou sensível àqueles supostos esgares de humor de Cavaco Silva, debitando banalidades grandiloquentes, quando desce ao ‘povo’, protegido por um eterno esquadrão de gorilas que jamais dispensa. Acho tudo aquilo uma fantochada, o Américo Tomás revisitado num país que eu desejo para sempre defunto e sepultado.
Esta viagem de Cavaco à Madeira serviu para me explicar, se eu não soubesse já, a razão pela qual jamais votei ou votarei neste homem. Porque, ao contrário do que ele parece pensar, não é o cargo que está ao serviço dele, mas ele que deveria estar ao serviço do cargo. E não esteve.
Miguel Sousa Tavares, Expresso de 19/04/2008
Etiquetas: Nacional, Palhaçada, Política
1 Comments:
Longo, mas bom.
By Anónimo, at 4/28/2008 10:47 da manhã
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